Casa Nova - Bahia

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15 de maio de 2018

Muito além da princesa Isabel, 6 brasileiros que lutaram pelo fim da escravidão no Brasil

Ilustração brasileiros que lutaram contra a abolição
Batalha pela abolição já ocorria nas províncias brasileiras anos antes da assinatura da Lei Áurea , e reunia escravos, negros libertos, pessoas da classe média e da alta sociedade
O fim da escravidão no Brasil completa 130 anos em 13 de maio deste ano. Em 1888, a princesa Isabel, filha do imperador do Brasil Pedro 2º, assinou a Lei Áurea, decretando a abolição - sem nenhuma medida de compensação ou apoio aos ex-escravos.
A decisão veio após mais de três séculos de escravidão, que resultaram em 4,9 milhões de africanos traficados para o Brasil, sendo que mais de 600 mil morreram no caminho.
Mas a abolição no Brasil está longe de ter sido uma benevolência da monarquia. Na verdade, foi resultado de diversos fatores, entre eles, o crescimento do movimento abolicionista na década de 1880, cuja força não podia mais ser contida.
Entre as formas de resistência, estavam grandes embates parlamentares, manifestações artísticas, até revoltas e fugas massivas de escravos, que a polícia e o Exército não conseguiam - e, a partir de certo ponto, não queriam - reprimir. Em 1884, quatro anos antes do Brasil, os Estados do Ceará e do Amazonas acabaram com a escravidão, dando ainda mais força para o movimento.
A disputa continuou no pós-libertação, para que novas políticas fossem criadas destinando terras e indenizações aos ex-escravos - o que nunca ocorreu.
Conheça abaixo as histórias de seis brasileiros protagonistas na luta pelo fim da escravidão:

Luís Gama, o ex-escravo que se tornou advogado

Luís Gonzaga Pinto da Gama nasceu em 1830, em Salvador, filho de mãe africana livre e pai branco de origem portuguesa. Quando o menino tinha quatro anos, sua mãe, Luísa, teria participado revolta dos Malês, na Bahia, pelo fim da escravidão.
Uma reviravolta ocorreu quando Gama tinha dez anos: ficou sob cuidados de um amigo do pai, que o vendeu como escravo. O menino "embarcou livre em Salvador e desembarcou escravo no Rio de Janeiro", escreve a socióloga Angela Alonso no livro Flores, Votos e Balas, sobre o movimento abolicionista. Depois, foi levado para São Paulo, onde trabalhou como escravo doméstico. "Aprendi a copeiro, sapateiro, a lavar e a engomar roupa e a costurar", escreveu o baiano.
Aos 17 anos, Gama aprendeu a ler e escrever com um estudante de direito. E reivindicou sua liberdade ao seu proprietário, afinal, nascera livre, livre era.
Em São Paulo, Gama se tornou rábula (advogado autodidata, sem diploma) e criou uma nova forma de ativismo abolicionista: entrava com ações na Justiça para libertar escravos. Calcula-se que tenha ajudado a conseguir a liberdade de cerca de 500 pessoas.

Retrato de Luís Gama, o ex-escravo que se tornou advogado de escravosDireito de imagemACERVO BIBLIOTECA NACIONAL - BRASIL
Image captionCalcula-se que Luís Gama tenha ajudado a libertar cerca de 500 escravos

Gama usava diversos argumentos para obter a alforria. O principal deles era que os africanos trazidos ao Brasil depois de 1831 tinham sido escravizados ilegalmente. Isso porque naquele ano foi assinado um tratado de proibição do tráfico de escravos. Mais de 700 mil pessoas tinham entrado no país nessas condições. Apenas em 1850 o tráfico de escravos foi abolido definitivamente.
"As vozes dos abolicionistas têm posto em relevo um fato altamente criminoso e assaz defendido pelas nossas indignas autoridades. A maior parte dos escravos africanos (...) foram importados depois da lei proibitiva do tráfico promulgada em 1831", disse Gama na época.
O advogado ainda entrou com diversos pedidos de habeas corpus para soltar escravos que estavam presos, acusados, sobretudo, de fuga. Ainda trabalhou em ações de liberdade, quando o escravo fazia um pedido judicial para comprar sua própria alforria - o que passou a ser permitido em 1871, em um dos artigos da Lei do Ventre Livre.
Luís Gama morreu em 1882, sem ver a abolição. Seu funeral, em São Paulo, foi seguido por uma multidão. "Quanto galgara Luís Gama, de ex-escravo a morto ilustre, em cujo funeral todas as classes representavam-se. Comércio de porta fechada, bandeira a meio mastro, de tempos em tempos, um discurso; nas sacadas, debruçavam-se tapeçarias, como nas procissões da Semana Santa", relata Alonso.
Na hora do enterro, alguém gritou pedindo que a multidão jurasse sobre o corpo de Gama que não deixaria morrer a ideia pela qual ele combatera. E juraram todos.

Maria Tomásia Figueira Lima, a aristocrata que lutou para adiantar a abolição no Ceará

Filha de uma família tradicional de Sobral (CE), Maria Tomásia foi para Fortaleza depois de se casar com o abolicionista Francisco de Paula de Oliveira Lima. Na capital, tornou-se uma das principais articuladoras do movimento que levou o Estado a decretar a libertação dos escravos quatro anos antes da Lei Áurea.
Segundo o Dicionário de Mulheres do Brasil, ela foi cofundadora e a primeira presidente da Sociedade das Cearenses Libertadoras que, em 1882, reunia 22 mulheres de famílias influentes para argumentar a favor da abolição.
Ao fim de sua primeira reunião, elas mesmas assinaram 12 cartas de alforria e, em seguida, conseguiram que senhores de engenho assinassem mais 72.
As mulheres conseguiram, inclusive, o apoio financeiro do imperador Pedro 2º para a iniciativa. Juntamente com outras sociedades abolicionistas da época, elas organizaram reuniões abertas com a população, promoviam a libertação de escravos em municípios do interior do Ceará e publicavam textos nos jornais pedindo a abolição em toda a província.
Maria Tomásia estava presente na Assembleia Legislativa no dia 25 de março de 1884, quando foi realizado o ato oficial de libertação dos escravos do Ceará, que deu força à campanha abolicionista no país.

Pintura da sessão parlamentar que aboliu a escravidão no Ceará, em 1884; há homens e mulheres dentro do ParlamentoDireito de imagemACERVO BIBLIOTECA NACIONAL - BRASIL
Image captionNessa pintura da sessão parlamentar que aboliu a escravidão no Ceará, em 1884, é possível ver diversas mulheres entre os homens

André Rebouças, o engenheiro que queria dar terras aos libertos

André Rebouças nasceu na Bahia, em 1838, em uma família negra, livre, e incluída na sociedade imperial. Quando jovem, estudou engenharia e começou a trabalhar na área. Foi responsável por diversas obras de engenharia importantes no país, como a estrada de ferro que liga Curitiba ao porto de Paranaguá. Conquistou posição social e respeito na corte. A Avenida Rebouças, importante via em São Paulo, é uma homenagem a André e a seu irmão Antonio, também engenheiro.
Em uma das obras de que participou, outro engenheiro pediu que Rebouças libertasse o escravo Chico, que era operário e tinha sido responsável pelos trabalhos hidráulicos. "Foi quando sua atenção recaiu sobre o assunto", escreve Angela Alonso, também em Flores, Votos e Balas. Chico foi, então, libertado.
"Sou abolicionista de coração. Não me acusa a consciência ter deixado uma só ocasião de fazer propaganda para a abolição dos escravos, e espero em Deus não morrer sem ter dado ao meu país as mais exuberantes provas da minha dedicação à santa causa da emancipação", discursou certa vez Rebouças, na presença do imperador Pedro 2º.

Retrato de André RebouçasDireito de imagemMUSEU AFRO BRASIL
Image captionAndré Rebouças era adepto de uma reforma agrária que concedesse terras para os ex-escravos

Na década de 1870, Rebouças se engajou na campanha pelo fim da escravidão. Participou de diversas sociedades abolicionistas e acabou se tornando um dos principais articuladores do movimento. Um de seus papéis foi fazer lobby - uma ponte entre os abolicionistas da elite e as instituições políticas, para quem executava obras de engenharia.
As ideias de Rebouças incluíam não apenas o fim da escravidão. Ele propunha que os libertos tivessem acesso à terra e a direitos, para serem integrados, não marginalizados. "É preciso dar terra ao negro. A escravidão é um crime. O latifúndio é uma atrocidade. (...) Não há comunismo na minha nacionalização do solo. É pura e simplesmente democracia rural", proclamou Rebouças.
O engenheiro também se opunha ao pagamento de indenização para os senhores de escravos em troca da liberdade - para Rebouças, isso seria uma forma de validar que uma pessoa fosse propriedade da outra.
Apoiador da monarquia e da família real brasileira, Rebouças foi ainda um dos responsáveis pela exaltação da Princesa Isabel como patrona da abolição.

Adelina, a charuteira que atuava como 'espiã'

Filha bastarda e escrava do próprio pai, Adelina passou a vender charutos que ele produzia nas ruas e estabelecimentos comerciais de São Luís (MA). Suas datas de nascimento e morte não são conhecidas. Seu sobrenome, também não.
Como escrava criada na casa grande, Adelina aprendeu a ler e escrever. Trabalhando nas ruas, assistia a discursos de abolicionistas e decidiu se envolver na causa.

Ilustração AdelinaDireito de imagemANDRÉ VALENTE | BBC BRASIL
Image captionComo não há registros fotográficos de Adelina, a charuteira, ilustração foi baseada em fotografias de escravas minas que viviam no Maranhão na época

De acordo com o Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, de Clóvis Moura (Edusp), Adelina enviava à associação Clube dos Mortos - que escondia escravos e promovia sua fuga - informações que conseguia sobre ações policiais e estratégias dos escravistas.
Aos 17 anos, Adelina seria alforriada, segundo a promessa que seu senhor fez a sua mãe. Mas, segundo o Dicionário, isso não aconteceu.

Dragão do Mar, o jangadeiro que se recusou a transportar escravos para os navios

O jangadeiro e prático (condutor de embarcações) Francisco José do Nascimento (1839-1914), um homem pardo conhecido como Dragão do Mar, foi membro do Movimento Abolicionista Cearense, um dos principais da província, a primeira do Brasil a abolir a escravidão.
Em 1881, o Dragão do Mar comandou, em Fortaleza, uma greve de jangadeiros que transportavam os negros e negras escravizados para navios que iriam para outros Estados do Nordeste e para o Sul do Brasil. O movimento conseguiu paralisar o tráfico negreiro por alguns dias.

Ilustração Dragão do MarDireito de imagemANDRÉ VALENTE | BBC BRASIL
Image captionFrancisco José do Nascimento se recusou a transportar escravos das praias de Fortaleza para navios negreiros

Com o comércio de escravizados impedido nas praias do Ceará, Nascimento foi exonerado do cargo, segundo o registro de Clóvis Moura. E se tornou símbolo da batalha pela libertação dos escravos.
Depois da abolição, ele tornou-se Major Ajudante de Ordens do Secretário Geral do Comando Superior da Guarda Nacional do Estado do Ceará e morreu como primeiro-tenente honorário da Armada, em 1914.

Maria Firmina dos Reis, a primeira escritora abolicionista

A maranhense Maria Firmina (1825-1917) era negra e livre, "filha bastarda", mas formou-se professora primária e publicou, em 1859, o que é considerado por alguns historiadores o primeiro romance abolicionista do Brasil, Úrsula. O livro conta a história de um triângulo amoroso, mas três dos principais personagens são negros que questionam o sistema escravocrata.
A escritora assinava o livro apenas como "Uma maranhense", um expediente comum entre mulheres da época que se aventuravam no mercado editorial, e só agora começa a ser descoberto pelas universidades, segundo a professora de literatura brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Constância Lima Duarte.

Maria Firmina dos ReisDireito de imagemANDRÉ VALENTE | BBC BRASIL
Image captionRomance de Maria Firmina dos Reis é considerado o primeiro a trazer o ponto de vista de personagens negros no Brasil escravocrata

Maria Firmina também publicava contos, poemas e artigos sobre a escravidão em revistas de denúncia no Maranhão.
De acordo com o Dicionário de Mulheres do Brasil: de 1500 Até a Atualidade (Ed. Zahar), ela criou, aos 55 anos de idade, uma escola gratuita e mista para crianças pobres, na qual lecionava. Maria Firmina morreu aos 92 anos, na casa de uma amiga que havia sido escrava.
Por Amanda Rossi e Camilla Costa (@_camillacosta)

27 de fevereiro de 2018

A IMPUNIDADE, SEMPRE A IMPUNIDADE!

Mesmo a turma que vive dentro de uma bolha, no mundo da lua, com fones de ouvido e óculos de realidade virtual concordará com a afirmação de que soltar bandido é um mau exemplo. A impunidade faz mal. Gilmar Mendes acaba de mandar outro para casa. Uhuh! A gangue do guardanapo respira ainda mais aliviada e já pode pensar em novas put**ias, para usar a desavergonhada expressão com que o próprio beneficiado pela medida se referiu a seus crimes. Mais adiante, a ação penal enfrentará nosso prodigioso sistema recursal.


 Há três anos, o Brasil festejou a decisão do STF que autorizou a execução provisória das penas após decisão em segunda instância. Na vida real de todo criminoso abonado, a regra até então vigente funcionava como um habeas corpus de crachá. Sentença definitiva com trânsito em julgado era sinônimo de “nunca”. Por isso, a nação aplaudiu e reconheceu a importância social da decisão, enquanto as manifestações contra o novo entendimento resumiram-se ao círculo dos advogados criminalistas, bem como aos garantistas e desencarceramentistas (sim, isso existe e está em atividade).
Não obstante, subsistem inconformidades no STF. Há ministros que preferem a moda antiga, creem que coisas bem feitas exigem vagar, demandando a quase pachorra de certos artesanatos. Doze horas para um costelão bem assado, três anos para um pedido de vistas, no mínimo oito para um uísque e duas décadas para um processo bem julgadinho. Suponho que, nesse entendimento, a prescrição, arraste consigo a sabedoria do tempo. Eis por que a caneta usada por alguns ministros para soltar presos parece não ter tampa. É claro que a sociedade fica indignada com essa conduta. Afinal, ela é outra face da mesma impunidade que viabilizou o cometimento de tantos e tão danosos crimes ao longo dos últimos anos. Das esquinas aos palácios. Os indultos, as progressões de regime e as atenções dadas a dengues e privilégios de alguns fidalgos de elevada estirpe ampliam o mal-estar.
Eu ficaria até constrangido de examinar a possibilidade de que o caso Lula possa influenciar as posições dos ministros sobre a prisão após condenação em 2ª instância. Não farei isso. Meu assunto, aqui, diz respeito às consequências sociais do retorno à regra da impunidade. O país não suporta mais. A impunidade não é parteira, apenas, da criminalidade. Ela estimula o retorno ao estado de natureza, a uma situação hobbesiana. Se o comando do jogo fica com o crime, os indivíduos tomam as rédeas em que possam deitar mão. As vaias cada vez mais assíduas nos aeroportos e aeronaves nacionais são o preâmbulo de algo que não se pode tolerar, tanto quanto não se deve tolerar a impunidade.
Por * Percival Puggina (73), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país.



Como os venezuelanos enfrentam a fome em meio a colapso econômico

BANDEIRA DA REPÚBLICA BOLIVARIANA DA VENEZUELA
Freddy carrega nas mãos um saco com peixe e mandioca. Esse vai ser o café da manhã, almoço e jantar dele, da mulher e dos cinco filhos. Ana, que costumava receber comida do governo, abre a porta da geladeira onde tem apenas água, banana e mandioca.
Os dois moram na Venezuela, que enfrenta uma grave crise política e econômica, e têm sobrevivido com muito pouco. A inflação disparou, a comida sumiu dos supermercados e a população está com fome.

“É como se as pessoas pobres tivessem perdido o direito de comer. Me transformei em um pai que luta para alimentar a família. A gente não pode continuar assim”, diz Freddy.
  • De acordo com a Pesquisa sobre Condições de Vida (Encovi), realizada anualmente pelas principais universidades do país, os venezuelanos perderam em média 11 quilos em 2017. Seis em cada dez admitem já terem ido dormir com fome por causa da falta de comida.
A inflação deve atingir 13.000%, segundo o FMI (Fundo Monetário Internacional). O quilo de arroz e o de macarrão está custando o mesmo que o salário mínimo do país.
Segundo a ONG Cáritas Foundation, 70% das crianças nas áreas pobres na Venezuela sofre de má nutrição. Os últimos dados do Ministério da Saúde do país indicam que a mortalidade infantil aumentou 30% em 2016.
A Cáritas detectou níveis alarmantes de desnutrição infantil nas províncias de Miranda, Vargas, Zulia e Distrito Capital.
É o caso do filho caçula de Kimberley Trejo que, além de má nutrição aguda, sofre com asma, anemia e diarreia.
Kimberley passou a pedir ajuda na rua para alimentar os filhos. “Meus filhos me pedem para não deixá-los com fome”, diz.
Em Caracas, as prateleiras do supermercado estão vazias. Mais de mil pessoas fazem fila todos os dias para tomar a sopa oferecida por iniciativa da Igreja Católica.
Os críticos dizem que a crise está relacionada à má gestão do governo de Nicolás Maduro. Já o governo alega que as sanções impostas à Venezuela está prejudicando o fornecimento de comida.
Arianne diz que as coisas ficaram piores há dois anos, depois que o segundo filho nasceu. "Tudo está mais caro e mais difícil de achar", conta, enquanto toma o sopão oferecido pela igreja há seis meses.
A crise se arrasta há meses no país.
E, em meio ao colapso econômico com débito público crescente, escassez de comida e superinflação, nove em cada dez venezuelanos vivem abaixo da linha da pobreza, de acordo com o estudo que aplicou questionário de 16 páginas e entrevistou 6.168 famílias em todo o país. ( Por BBC BRASIL ) 

22 de fevereiro de 2018

Das tretas e da importância de prestar atenção nelas

Resultado de imagem para mental healthQue as redes sociais digitais nos introduziram na Idade das Tretas é fato conhecido e consumado. Como sempre, há os que acham isso deplorável e os que veem no fato um sintoma de revigoramento da esfera pública democrática. O primeiro time lastima a baixa qualidade do debate público em uma circunstância em que se trocam muitas ofensas e poucos argumentos, e em que a divergência com civilidade foi substituída pela busca incansável da provocação e do conflito, cujo propósito principal parece ser a humilhação e o aniquilamento do adversário.  O segundo grupo insiste que a democracia se faz com atrito de pensamento; que há esclarecimento recíproco mesmo quando adversários ferozes parecem nada conceder à posição contrária; que é melhor para todos que as pessoas botem para fora as ideias, mesmo as mais absurdas, distorcidas e antissociais, do que deixar que tais ideias permaneçam na forma de convicções dogmáticas, cristalizadas e intocadas pelas objeções alheias. Uma convicção publicada é uma convicção exposta, no sentido de que só assim pode ser submetida ao teste de aceitação ou de repúdio público por meio do debate, do exame argumentativo e, é claro, da treta.


Não é difícil admitir que ambos os lados podem estar certos, mas gostaria de acrescentar um outro argumento em favor da treta e de outras formas de divergência pública expostas em redes digitais. É um argumento, digamos, de “etnografia política”: na treta a gente consegue, na maior parte das vezes, detectar os pontos de vista “à flor da pele” social, quer dizer, os argumentos sobre divergências sociais latentes, sobre tensões às quais grupos específicos são muito sensíveis ou sobre insatisfações a ponto de eclodir.
É bom que se esclareça desde o início: os pontos de vista, mesmo os mais polêmicos, não são propriamente a treta. Ao contrário, mesmo convicções extremas e sem fundamento na realidade (como as ideias correntes de que a Terra é plana, o aquecimento global é uma invenção do politicamente correto e o nazismo uma ideologia de esquerda), são compartilhadas sem polêmica no interior dos ambientes sociais que as sustentam. A treta só aparece quando os ambientes sociais se tocam e um atrito é produzido, isto é, quando ideias compartilhadas e recompensadas com afeto social no interior do grupo de referência são apresentadas e rejeitadas por outros grupos ou pela sociedade em geral. A treta é o marcador do nível de divergência social acerca de um ponto de vista quando ele é recebido fora do grupo de referência.
Por vezes, o grupo de referência fica sinceramente chocado pelo nível de conflito gerado pela apresentação de um ponto de vista que é uma convicção comum dentro do seu ambiente social. “Como assim alguém discorda de que índio não é fantasia”? “Como assim não há nada de mais em gays se beijarem na rua durante o Carnaval”? O espanto serve de insumo para inflamar o grupo de referência (que pode ser definido como o conjunto de pessoas para as quais aquela convicção faz sentido) e para acionar o “comportamento de enxame”, voltado para defender o ponto de vista e para atacar quem tenta desqualificá-lo ou, até mesmo, quem dele simplesmente diverge. Treta que é treta tem que ter enxame, tem que juntar galera, tem que ter faca na bota e pé no peito. O mesmo acontece em sentido contrário. Quem está fora da bolha que compartilha aquela convicção, exposto inadvertidamente ao ponto de vista inusitado, demonstra o seu choque por meio de todas as formas típicas de rejeição no mundo digital: republicação da ideia chocante para constranger quem a publicou, ridicularização do conteúdo, elaboração de argumentos contrários, ataque à fonte e desqualificação da mentalidade que a gerou.
Se as pessoas mudam ou não o próprio ponto de vista em virtude da treta, é coisa difícil de precisar. A desconfiança mais generalizada é de que a treta é menos uma discussão pública sincera, em que pontos de vista podem ser modificados à vista dos argumentos apresentados pelos interlocutores, e mais um instrumento para reforçar os vínculos internos do grupo de referência e para demarcar as suas diferenças com o adversário, “o outro”. É a treta pela treta, em que os objetivos imanentes são os que realmente importam. Assim, a rejeição ao argumento é considerada uma rejeição “a nós”, à nossa identidade, e só reforça o fato de que entre nós e eles não pode haver acordo.
Além disso, a treta dá à demarcação identitária ares de legitimação conceitual, filosófica e baseada em princípios e não em preferências, crenças e raiva. Afinal, interesses e preferências são coisas mesquinhas e rebaixadas, enquanto se espera que princípios e valores concedam um padrão moral elevado a qualquer rixa e briga de facas. Os argumentos, os conhecemos: Não é por 20 centavos, é para consertar o Brasil; não é para tomar um mandato presidencial que a gente não está conseguindo nas urnas, é para banir a corrupção política do Brasil; não podemos transigir com quem acha que índio, mulheres e negros podem, sim, ser fantasias de Carnaval, pois o que está em jogo é o desrespeito aos índios, às mulheres e aos negros, o que não podemos permitir. Não somos preconceituosos ao declarar a nossa repugnância a gays se beijando no Carnaval, é que se trata dos valores da família e da decência pública em questão e se não os defendemos, que sociedades seremos? O grupo de referência tem razões nobres e, portanto, tem sempre razão, de forma que, julga, apenas a ignorância, a estupidez ou a maldade podem explicar a rejeição ao seu ponto de vista.
Mas a treta também nos permite detectar os fluxos de ideias em curso na sociedade e que, normalmente, podem passar longe dos nossos radares normais. No meu ambiente social, as formas mais brutas de homofobia, de machismo, de racismo e de preconceito de classes raramente se apresentam, assim como o obscurantismo, o ódio à esquerda, o fundamentalismo religioso, o anticapitalismo, o antiliberalismo. Na ocorrência de tretas é que o que está à flor da pele aflora e eu consigo ter uma noção dos temas sensíveis, dos pontos de vista candentes, das ideias surpreendentes em processo na usina social de grupos e ambientes a que não pertenço e que, frequentemente, são política e socialmente importantes. E em redes sociais digitais, do ponto de vista da detecção de temas e tretas surpreendentes, cada dia é um susto.
Fala-se da “esgotosfera” das redes digitais, que permitem que o sombrio, o recalcado e o regressivo sejam vomitados nas nossas timelines. Mas se a brutalidade está lá, não é melhor que consigamos detectá-la e lidar com ela? Umberto Eco, há alguns anos, falou que as redes digitais haviam dado voz ao “doido da aldeia”, que em circunstâncias normais dizia as coisas mais disparatadas que todos estavam prontos a ignorar. Este maluco social, segundo ele, agora ganhou um megafone de alcance potencialmente universal e a chance de fazer prosélitos. Tem razão, mas há coisas mais sérias do que tretas digitais que a democracia permite aos extremistas, aos loucos de mídias sociais, aos identitários mais ferozes e aos portadores das convicções mais antissociais e antiliberais: eles votam. Expor ideias polêmicas, ou mesmo antissociais, e defendê-las em inflamadas tretas é provavelmente menos pernicioso do que mobilizar eleitores e votar. Como nem passa pela nossa cabeça retirar-lhes esse direito, é melhor que pelo menos saibamos o que pensam e tomemos as devidas contramedidas argumentativas e políticas. Sobretudo para não deixar que falem sozinhos nos ambientes sociais em que, hoje, se processa grande parte do confronto de ideias que são as redes sociais digitais. Mais do que nunca, em nossos dias, tretar é preciso. ( Por Wilson Gomes )

25 de setembro de 2017

Há 183 anos, D. Pedro I morria em Portugal, vítima de suas batalhas

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A mais que insólita e heroica - vida do primeiro imperador

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esde criança, todo brasileiro está acostumado a ver dom Pedro I de pelo menos duas maneiras. A primeira é aquela dos livros didáticos, com sua pose sisuda, porte imperial e tão (pouco) atraente como uma estátua mal conservada em praça pública. A segunda versão, mais popular, é a do dom Pedro intempestivo, mulherengo, uma espécie de latin lover (se você tem mais de 30 anos, provavelmente lembra do então galã Tarcísio Meira no filme Independência ou Morte, reprisado inúmeras vezes na Sessão da Tarde durante a década de 1980). Enfim, o português temperamental que proclamou a independência em um acesso de fúria à margem do rio Ipiranga, em meio a um forte desarranjo intestinal.

O que pouca gente sabe é que, entre essas duas versões, há outra face de dom Pedro bem menos conhecida no Brasil que só agora começa a ser resgatada. “Ele se tornou um símbolo de liberdade na Europa na década de 1830”, diz Isabel Vargues, professora de História da Universidade de Coimbra, em Portugal. “Em meio a inúmeros monarcas conservadores que estavam de volta ao poder nesse período, Pedro IV foi considerado um estadista moderno que inaugurou um período liberal no país.” (Não estranhe: “Pedro IV” é como nosso dom Pedro I passou a ser chamado pelos portugueses após ser proclamado rei em sua terra natal.)

Pesquisas já revelaram um lado fascinante do homem que conseguiu transformar a América Portuguesa em uma única nação, destino bem diferente do da América Espanhola – que se fragmentou em várias repúblicas.

Isso não significa, é claro, que dom Pedro esteja sendo conduzido ao posto de guia moral da história do Brasil. De fato, ele teve várias amantes e é bastante confiável a possibilidade de que ele tenha tido crises de diarreia em meio à proclamação da independência. Mas o realce que uma parcela da população e de historiadores continua a dar a esses aspectos picarescos parece apenas confirmar o prazer que sentem os brasileiros em reduzir os feitos de nossos vultos históricos. Afinal, é difícil imaginar que um americano ponha em xeque a grandeza de John Kennedy devido às suas escapadas conjugais (como a que teve com a atriz Marilyn Monroe). Tampouco seria fácil encontrar um francês diminuindo a grandeza de Napoleão por causa de algum mal-estar intestinal em meio a uma de suas batalhas – algo bem provável de ter acontecido.

“Não se trata de negar defeitos do caráter de dom Pedro I, mas de reconhecer que ele foi um estadista avançado quando comparado aos seus pares da época”, diz Braz Brancato, professor de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e estudioso da vida de dom Pedro após sua volta para a Europa. “Além disso, ele conseguiu governar em um dos períodos mais turbulentos para os regimes monárquicos, que estavam caindo a todo momento.”
Dom Pedro na infância
O pequeno príncipe
A vida de dom Pedro começa em um quarto no Palácio de Queluz, residência da família real portuguesa, cujas paredes estavam decoradas com cenas do clássico Dom Quixote de la Mancha. Foi ali que Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon nasceu, em 12 de outubro de 1798.

Apesar do nome portentoso, aquela não era uma boa hora para um príncipe de Portugal nascer. Na época, o país estava encurralado entre duas potências. De um lado, a antiga aliada Inglaterra, dona da mais temida marinha do mundo. Do outro, a França de Napoleão Bonaparte, que havia acabado de invadir a Espanha e exigia que Portugal fechasse seus portos para os ingleses. No aperto, dom João optou pela Inglaterra, a aliada tradicional. O resto você já sabe: a corte portuguesa foi transferida para o outro lado do Atlântico em 1808 e o Brasil jamais seria o mesmo.

A família se adaptou logo à vida por aqui, incluindo o pequeno Pedro. Cercado de tutores encarregados de prepará-lo para ser o sábio sucessor do pai, o pequeno príncipe acabou tendo uma infância tão movimentada quanto a de qualquer moleque carioca da época. Irreverente, divertia-se dando pancadas no queixo dos meninos que vinham beijar-lhe a mão. Fascinado por armas, caçava à vontade. Adorava andar a cavalo, tocava vários instrumentos musicais e gostava do trabalho manual. Orgulhava-se de seu talento como marceneiro e ferreiro, atividades, à época, consideradas “próprias para escravos”. Mas ele não ligava: costumava conversar horas com criados.

Esse convívio popular atraía comentários não muito elogiosos. Nobres francesas reconheciam que ele era um rapagão bonito – de acordo com as más línguas, a única pessoa bonita de toda a casa real de Bragança –, mas abominavam suas roupas e seus modos. Mesmo assim, ao completar 18 anos, o príncipe era considerado um dos maiores conquistadores do Rio de Janeiro.

Era hora, então, de arrumarem uma nobre noiva para dom Pedro. E bota nobre nisso: a jovem arquiduquesa (ou apenas “princesa”) Leopoldina Carolina era filha do imperador Francisco I, último líder do milenar Sacro Império Romano-Germânico (dissolvido até sua derrota para Napoleão, em 1804 - quando se tornou "mero" imperador da Áustria).

Os dois não podiam ser mais diferentes: enquanto dom Pedro preferia andar com amigos de origem simples, Leopoldina era muito refinada, tinha sólida formação científica (era craque em mineralogia) e havia sido amiga do poeta alemão Johann W. Goethe e do compositor austríaco Franz Schubert. Como a irmã de Leopoldina tornara-se esposa de Napoleão, dom Pedro se tornou concunhado do homem que obrigou sua família a fugir de Portugal. Apesar das diferenças, Leopoldina ficou de queixo caído no primeiro encontro com o noivo. Eis o que ela escreveu numa carta sobre a primeira refeição a dois entre eles: “Conduziu-me ao salão de jantar, puxou a cadeira e, enquanto comíamos, piscou-me o olho e enlaçou a perna dele na minha debaixo da mesa”.
Wikimedia Commons
Pedro e Leopoldina
Crise em Portugal
Apesar do casamento, a paz da família real no Rio estava com os dias contados. Desde 1815, com a derrocada de Napoleão, a desculpa que a corte tinha usado para se mudar para o Brasil não se sustentava mais. Dom João (agora João VI, graças à morte de sua mãe, Maria I) não só se recusava a voltar como havia transformado a ex-colônia em reino unido a Portugal, sacramentando o Brasil como sede do império português. A capital carioca havia deixado de ser uma vila acanhada de uns 40 mil habitantes para virar uma metrópole de mais de 100 mil.

Quem não estava achando essa história nada engraçada eram os portugueses. Eles haviam perdido o domínio político sobre o Brasil, viviam uma crise econômica (gerada, em parte, pelo fim do monopólio comercial sobre a colônia) e estavam submetidos a uma humilhante ocupação militar inglesa. Adicione a esse caldo uma pitada das ideias da Revolução Francesa, que ainda repercutiam em toda a Europa, e o resultado foi a chamada Revolução Constitucionalista do Porto, em 1820. Os revolucionários convocaram eleições e exigiram uma Constituição para Portugal, limitando os poderes absolutos do rei. Para isso, determinavam que o soberano voltasse.

Dom João VI não sabia se ia, se ficava ou se mandava dom Pedro. Tudo indica que ele temia o interesse do filho pelas ideias liberais e que, uma vez em Lisboa, ele fosse aclamado rei pelos revolucionários. O herdeiro, por sua vez, ressentia-se da desconfiança do pai. Em meio à crise, dom Pedro acabou se tornando porta-voz das reivindicações constitucionais junto ao pai, convencendo-o a jurar lealdade à Constituição.

Quando dom João VI decidiu retornar, em março de 1821, dom Pedro tornou-se príncipe regente do Brasil. Pouco antes da partida do pai, ele tomou sua primeira medida antipopular: mandou reprimir com baionetas tumultos causados por protestos contra medidas impostas por Portugal. Pelo menos três pessoas morreram no episódio.
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Selo comemorativo de 1982
Independência
Em Portugal, dom João VI tornou-se uma figura decorativa. Quem governava, de fato, era a Assembleia – e suas medidas atingiam em cheio o orgulho brasileiro. “O projeto dos portugueses mais exaltados parecia ser a redução do Brasil ao estado colonial, numa situação política e econômica mais desvantajosa que a de antes da vinda do rei”, diz Isabel Lustosa, autora da biografia Dom Pedro I. A partir de então, Portugal decidiu que cada província do Brasil teria um governo autônomo que responderia diretamente a Lisboa, enfraquecendo o poder do príncipe regente. Para piorar, Lisboa enviou tropas ao Brasil que deviam submissão direta ao governo português.

Dom Pedro estava dividido. De um lado, era inclinado a manter-se fiel a Portugal. Do outro, era atraído pelos panfletos e boatos que anunciavam que seria aclamado rei ou imperador do Brasil, caso rompesse com Lisboa. Um decreto luso exigindo que o príncipe voltasse à Europa, onde deveria viajar por vários países para “terminar sua educação”, fez com que ele enfrentasse diretamente as ordens da corte e decidisse permanecer no Brasil. Foi o Dia do Fico, em 9 de janeiro de 1822. Estava aberto o caminho para a independência.

Na tarde do dia 7 de setembro, ao voltar de uma viagem à capital paulista para apaziguar disputas políticas, a comitiva de dom Pedro foi alcançada na colina do Ipiranga pelo serviço de correio da corte. As notícias não eram nada boas: a Assembleia portuguesa exigia a demissão de todos os ministros nomeados por dom Pedro e ameaçava fazer uma devassa em todos os atos do príncipe.
Segundo um dos membros da comitiva, o padre Belchior (o mesmo que narrou que dom Pedro estava sofrendo uma disenteria “que o obrigava o tempo todo a apear-se para prover”), dom Pedro pisoteou as cartas vindas de Portugal, arrancou do chapéu o laço com as cores lusitanas e teria dito as famosas palavras: “Laços fora, soldados. Viva a independência, a liberdade e a separação do Brasil”, declarando que o lema do país seria “Independência ou Morte”.

Em 12 de outubro, dom Pedro I é aclamado imperador e defensor perpétuo do Brasil. Mas, diferentemente do que muita gente imagina, a independência do país não foi feita apenas com o grito no Ipiranga. Ao cortar os laços com Portugal, o Brasil, na prática, declarou guerra à ex-metrópole. Sangue foi derramado em diversas regiões – em algumas províncias, como na Bahia, a independência só seria conquistada quase um ano depois.
Capa da Constituição de 1824
Constituinte
Após a independência, prevalecia o consenso de que o Brasil precisava de uma Constituição própria. Apesar de defender princípios liberais, dom Pedro temia que o poder da Assembleia Constituinte eleita em 1823 ameaçasse seu governo, o que poderia também levar à fragmentação do Império. Após se sentir desafiado pelos parlamentares oposicionistas, ele dissolveu a Assembleia em novembro e, em março de 1824, outorgou uma Constituição elaborada por um conselho de dez membros que ele mesmo indicara.

“Por muito tempo, essa medida autoritária terminou ofuscando o reconhecimento do avanço do texto constitucional imposto por dom Pedro”, diz a historiadora Lucia Bastos Neves, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. A nova Constituição incluía direitos pouco comuns para a época, como a liberdade de crença e culto concedida a adeptos de religiões não-cristãs. Por outro lado, garantia ao imperador poderes excepcionais. Além de ser o chefe do Executivo, ele detinha também o chamado Poder Moderador, com o qual podia resolver impasses entre os demais poderes com mão de ferro e dissolver o Congresso quando quisesse.

A decisão causou revolta. Lideradas por Pernambuco, várias províncias do Nordeste se rebelaram contra o que consideraram um ato de tirania, formando a chamada Confederação do Equador. A repressão foi implacável e vários chefes rebeldes, entre eles Frei Caneca, foram executados. A revolta foi seguida por outra, no extremo sul do Império: a província da Cisplatina (atual Uruguai), anexada por dom João VI, rebelou-se com ajuda da Argentina. A guerra acabou em 1828, com o reconhecimento do Uruguai como país independente.

Outros desastres, dessa vez na vida doméstica, foram minando a popularidade do soberano. O principal deles foi o triste fim de seu casamento com dona Leopoldina. Dom Pedro chegou muito perto de assumir em público seu romance com Domitila de Castro, a marquesa de Santos, com quem teve vários filhos reconhecidos. O pior, porém, é que transformou a amante em dama de honra da imperatriz. Dona Leopoldina sofreu uma série de crises depressivas. Acabou morrendo em dezembro de 1826.

Com a morte de dom João VI no mesmo ano, o imperador se viu envolvido na sucessão do trono português. Acabou designando sua filha adolescente, dona Maria da Glória, como rainha de Portugal, combinando o casamento dela com o tio, dom Miguel, nomeado regente. Tiro pela culatra: Miguel assumiu o poder como rei absoluto de Portugal e mandou o irmão às favas.

Por aqui, as hostilidades entre brasileiros e portugueses fizeram com que dom Pedro percebesse que os nativos sempre o veriam com desconfiança por seus laços congênitos com Portugal. A imprensa atacava dom Pedro violentamente, o povo protestava nas ruas. Como seu filho, Pedro, havia nascido no Brasil, o imperador deu sua última cartada para que o Brasil não se esfacelasse, abdicando do trono em nome de uma criança de 5 anos de idade (que, coroado em 1841, seria o último imperador do Brasil).
Como dom Pedro IV de Portugal
Pedro IV
Para nós, brasileiros, a história de dom Pedro costuma terminar por aqui, com seu retorno à Europa. Mas foi ao partir para o exílio, em 1831, então já casado com dona Amélia, uma princesa alemã, que ele viveu uma espécie de renascimento e se tornou um ícone da liberdade na Europa. Havia vários motivos para que dom Pedro fosse encarado dessa maneira. O primeiro deles era sua defesa da volta de um governo constitucional às terras lusas, governada então despoticamente por seu irmão Miguel. “Naquela época, não era comum que um monarca se empenhasse em garantir direitos constitucionais”, diz Braz Brancato. Segundo o historiador, isso fazia com que ele fosse visto com desconfiança por seus pares da Santa Aliança, grupo de monarquias conservadoras cristãs que incluía Rússia, Áustria e Prússia (hoje na Alemanha).

Ao se instalar em Paris com parte da família, dom Pedro tornou-se uma das personalidades mais populares da capital francesa, sendo recebido com deferência nos elegantes bailes da corte. A França vivia uma onda liberal marcada pela ascensão do rei constitucional Luís Filipe e dom Pedro chegou a morar em um castelo real, onde recebia exilados de Portugal e de outros países que sofriam sob a mão de monarcas despóticos.

Nesse período, ele buscou apoio militar para invadir Portugal e destituir seu irmão, fazendo de sua filha a rainha de Portugal. Apesar do apoio verbal, nenhum dos reinos europeus quis se envolver oficialmente com a briga. Foi só com empréstimos pessoais (para pagar mercenários) e certo número de voluntários portugueses e franceses que dom Pedro partiu para sua derradeira aventura. Liderando um exército de 7 mil homens, ele foi para Portugal, onde teria que enfrentar dezenas de milhares de soldados comandados por dom Miguel.
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A morte de dom Pedro I no Palácio Nacional de Queluz
O fim de um guerreiro
Incansável e se arriscando pessoalmente nas batalhas, ele inspirou seus soldados de tal maneira que o que parecia impossível aconteceu: em 20 de setembro de 1834, Portugal passava às mãos da nova rainha, dona Maria II. “Ela e seu filho, Pedro V, iriam inaugurar a fase moderna e constitucional da monarquia portuguesa”, diz Isabel Vargues.

O ex-imperador do Brasil não viveu muito para acompanhar o governo da filha. A guerra acabara também com sua saúde, e ele morreu provavelmente de tuberculose no dia 24 de setembro de 1834. No mesmo quarto decorado pelas cenas de dom Quixote onde ele nascera, 36 anos antes, quando o Brasil não passava de uma colônia portuguesa do outro lado do Atlântico.
Todas as mulheres do imperador
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  • Fazer a conta de quantas mulheres passaram pela cama de dom Pedro ao longo de sua curta mas apimentada vida é um desafio temerário. Até porque boa parte de seus casos não veio a público. Basta dizer que seus muitos filhos estão oficialmente registrados, tidos com duas esposas (Leopoldina e Amélia) e cinco amantes. Ele não costumava perdoar mulheres da mesma família: deu suas escapadas com uma das irmãs da marquesa de Santos, sua amante mais famosa, bem como com a dançarina Noemi Thierry e a irmã da própria.

     Ninguém ainda conseguiu explicar muito bem o que dom Pedro viu na marquesa – que se chamava Domitila de Castro e originalmente não era de família nobre coisa nenhuma, e só foi ganhando títulos e mais títulos pelas boas graças dele. Segundo quase todos os contemporâneos, não era muito bonita, e já tinha se separado do primeiro marido por ter sido infiel a ele. Mas o fato é que o imperador não só trocou cartas apaixonadas com ela durante sete anos (chamava-a de “Titília” e chegou a dedicar-lhe alguns versos de valor literário duvidoso) como deu cargos e títulos de nobreza para a família inteira de Domitila. A filha mais velha dos dois ganhou o título de duquesa de Goiás. A mãe da marquesa, dona Escolástica, era chamada de “velha querida do meu coração” pelo imperador. 

    O casal brigou de vez, após uma série de idas e vindas, quando dom Pedro decidiu casar-se novamente, com dona Amélia, então com 17 anos e, ao que consta, uma das princesas mais belas da Europa. Dona Amélia parece ter sido a única mulher que conseguiu botar um freio no sujeito, embora ele tenha dado suas escapadas durante a fase que passou exilado em Paris. Há indícios de que não foi só por virtude que ele deu essa sossegada no fim da vida. Numa carta de 1830 a Antônio Teles, o imperador relata seu “propósito firme de não... (insira aqui seu verbo preferido para designar o ato sexual) senão em casa, não só por motivos de religião, mas até porque para o pôr assim (desenho de um pênis ereto) já não é pouco dificultoso”. E, em outra carta, endereçada à marquesa de Santos: “Desgraçado daquele homem que uma vez desconcerta a máquina triforme (o pênis), porque depois, para tornar a atinar, custa os diabos”.
  • Por Reinaldo Lopes e Rodrigo Cavalcante/Uol História