Millôr Fernandes viajou esta semana para a eternidade, onde os esperam as obras que produziu, as peças que escreveu, as que brilhantemente traduziu, as frases que criou e cristalizou na memória de milhões e milhões de leitores desde a época da revista O Cruzeiro, projetando-se, como ele próprio se definiu, um escritor sem estilo.
Uma de suas frases foi manchete de primeira página da edição de ontem, quinta-feira, da Folha de São Paulo:”A gente só morreu uma vez. Mas é para sempre.” Um rebelde também contra tudo de injusto e de farsa que aparecesse à sua frente. Mensagem assinada por ele na página que assinava na Veja: “Peço que deixem de falar comigo os artistas que fazem propaganda de empréstimo consignado aos aposentados.”
Tenho certeza que surtiu efeito concreto. Pelo menos na consciência dos que a compreenderam e, sobretudo, a interpretaram como mensagem de sua personalidade.
Um gênio, disse eu no título. Não só do humor escrito, mas do traço, incluindo a piada certeira como um provérbio. Lembro da seção PIF-PAF que tornou famosa em O Cruzeiro, que liderava a cadeia de publicações, rádios e emissoras de televisão de Assis Chateaubriand. Falo das décadas de 40 e 50. Já vão longe. Como ele ao passar e iluminar esta vida.
Eis mais uma frase, esta no PIF-PAF que recordo: “Enquanto os sábios discutem sem certeza, os idiotas atacam de surpresa”.
O grande Millor, irmão de Helio Fernandes, foi alguém que, através do riso, na face ou nos olhos, além de tudo também confrontou o poder. Aliás nunca levou o poder a sério. Atuação múltipla, desenvolta, criativa, brilhante, vibrante, veloz, amigo agradável, companhia saborosa nas caminhadas, manhãs de domingo, pela Vieira Souto, onde morava.
O percurso, ao lado dele e Gravatá, seu grande amigo, terminava num café, na Livraria Travessa ou no Garcia e Rodrigues. Neste, num domingo, a oferta de mais uma tradução. Não sei se chegou a aceitá-la ou concluí-la. Era para traduzir história semelhante a Romeu e Julieta, original espanhol.
Nesse dia, ele me disse que havia se deparado com alguns Romeus e Julietas, histórias iguais à de Shakespeare em outras línguas que não o inglês.
Ele morreu. Fiquei sem saber quais são elas. Shakespeare ele traduziu também, assim como Goldoni, Pirandelo e Ionesco. Imortal sua peça “Liberdade, Liberdade”, em parceria com Oduvaldo Viana Filho, com Paulo Autran e Teresa Raquel no teatro de Arena. Um hino à liberdade contra a ditadura militar. Ele, os atores, inclusive Vianinha que estava no elenco, por um triz não sofreram um atentado à bomba em noite de espetáculo. Com esta peça, Millôr cumpriu para consigo mesmo seu eterno compromisso de artista e cidadão.
Com “Liberdade, Liberdade” promoveu o encontro da arte com a condição humana. Com a cultura que é, em síntese, a passagem de todos pelo tempo, nosso eco, nosso rastro, nossa sombra. Firme personagem e co-proprietário do Pasquim, sufocado pelo arbítrio do ciclo dos generais do poder. Nunca buscou indenizaçãodo governo. Ao contrário de alguns colaboradores que nada – absolutamente nada – sofreram.
Sua viagem começou pelo O Cruzeiro, com escalas repetidas no Jornal do Brasil, na Veja, uma breve presença no Correio da Manhã. Breve como a de Nelson Rodrigues, a demissão de Cony e Carpeaux. O diretor do jornal era Osvaldo Peralva.
De escala em escala através da imprensa, Millôr chegou ao final da linha e da viagem. Agora, para ele, o tempo não conta mais neste adeus amigo. Porque é marcado apenas por um relógio sem ponteiros.
(Por Pedro do Coutto/Tribuna)
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