Casa Nova - Bahia

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4 de dezembro de 2013

Fenômeno do Samba, Riachão recupera parte de seu Acervo.

Riachão , cantor e compositor

No fim da década de 1950, uma baleia parou Salvador. O bichão embalsamado foi colocado numa carreta para exibição pública. A iniciativa partiu de empresários norte-americanos, que cobravam ingresso para ver Moby Dick. Acompanhado de dois amigos, Clementino Rodrigues preparava-se para um gole de cachaça, quando atentou para o movimento. Feito o “perguntado”, veio o estranhamento. “Baleia aqui na Praça da Sé, se o mar está lá embaixo?” Sem querer gastar o sagrado dinheiro reservado à branquinha, foi falar com o policial que controlava a entrada. “Meu grande amigo, muito boa tarde. Não leve a mal não, somos da imprensa e queríamos permissão para ver a baleia. ‘Oh, pois não’, disse, e liberou a passagem. Quando comecei a olhar para aquela baleia enorme, Jesus mandou a música.”

Clementino Rodrigues é Riachão, lenda viva do samba baiano, menino buliçoso hospedado no corpo de um homem de 92 anos que transborda vivacidade e fé na vida. “Sou feliz da hora que acordo, como está no samba minha vida é alegria,/ à tristeza não dou bola,/ se surgir algum problema,/ com o samba resolvo na hora, diz, ou melhor, canta. A memória de Riachão é musical. A quase tudo responde cantando. É assim com o caso da baleia. Ele recorda com clareza o episódio ocorrido em 1959 e de seus arquivos mentais saca a canção completa (Baleia da Sé), tremendo sucesso que fascinou especialmente as crianças, deslumbradas com o gigante marinho e embaladas pelo refrão: Eu vi o caminhão da baleia/ eu vi o cabeção da baleia/ eu vi o barrigão da baleia/eu vi o umbigão da baleia/ só não vi uma coisa – diz! – da baleia.
Depois do drible de mestre no segurança foi a vez de dar volta no gringo. “Eu ali, pequeninho, perto do americano alto. Toquei nele e disse, ‘ó, samba em homenagem à baleia’. Ele falava um pouco de brasileiro e ficou encantado, queria gravar. Pedi 5 mil-réis, era um bom dinheiro. Comprei quatro acetatos, três ficaram com ele, que usou a música para fazer publicidade.”
A gravação foi feita por um amigo da Rádio Sociedade da Bahia, onde Riachão se apresentou durante as décadas de 1930 e 1940, sempre com repertório próprio. Foi ali que desapareceram muitas de suas músicas. “Teve um incêndio na rádio e tudo o que eu havia copiado estava num rolo que virou pó. Quem dera eu pudesse lembrar todas elas”, lamenta. O compositor e intérprete contabiliza 500 composições, uma avalanche de criatividade que começou a se manifestar aos 14 anos.
“Eu ia passando no bairro da Misericórdia para comprar material para a alfaiataria Spinelli, onde comecei a trabalhar aos 12 anos, quando vi no chão um pedaço de revista. Não tive escola, como digo no samba (Menino de Rua), mas Jesus fez eu ler. Estava escrito ‘se o Rio não escrever, a Bahia não canta’. Fiquei com aquilo no juízo. Contando parece mentira. Na manhã seguinte Jesus mandou minha primeira música (eu sei que sou malandro sei,/ conheço o meu proceder,/ deixa o dia raiar,/ a nossa turma é boa, é boa somente para batucar). A partir dessa nunca mais faltou música. Vem tudo junto no pensamento e aí faço força pra ficar na mente.”

Riachão se define como um malandro da velha-guarda. Para honrar a categoria, apresenta-se de terno e sapatos brancos, anéis coloridos, correntes e pulseiras, lencinho no bolso do paletó a combinar com a camisa e o chapéu. No pescoço, uma onipresente toalhinha, resquício dos tempos de capoeirista, arte praticada pelo pai, também “sambador e carroceiro”. “A malandragem é uma coisa, a vagabundagem é outra”, esclarece. “Malandro trabalha, vive cantando pra levar alegria, só coisa boa. O vagabundo, como se sabe, é traiçoeiro e aí por diante.”
Alegre, farrista, orgulha-se de sempre ter tido parceiro para tudo, “pra música e pra velório”. Em seu currículo, que incluiu mais de 20 anos como contínuo do Banco de Desenvolvimento da Bahia, onde cantava enquanto distribuía documentos, consta a função de sentinela. “Quem não queria passar a noite no velório me chamava. A gente ficava do lado do morto, tomando cachaça e conversando, inventando histórias. Ia pra casa de manhã e voltava à tarde para o enterro.” Os parentes do finado se encarregavam de comprar vários litros da branquinha. “Bebo desde os 9 anos. Não tenho o que falar da cachaça, nunca passei mal. Parei faz seis anos, mas sinto falta.”
Clementino virou Riachão por obra e graça dele mesmo. “Minha família é de Santo Amaro da Purificação e naquele tempo a palavra riachão era para os homens que brigavam muito.” Nascido no Bairro do Garcia, reduto do samba de rua, onde vive até hoje, mantém interação simbiótica com o ritmo que venera e associa à suprema divindade: “O samba é Deus, é alegria. Nasci com o samba no pé, no duro da cebola.”
( Por Ana Ferraz/ Carta Capital )

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